quarta-feira, 9 de novembro de 2011


Vivera aquele dia a mistura de Caymmi e Godard.
Era existência demais para uma pessoa apenas sustentar ainda que ela nunca recusasse vida - com suas dores e amores.

***

Passou seus medos a limpo, conversou novamente com seu Caminho (já era a segunda vez na mesma semana que o procurava).
 O Rei de Paus a seguia, com seu olhar penetrante, lembrando-a de quem a aguardava e para que a perseguia.
Ouvira atentamente seus conselhos, mas havia um medo presente que a segurava como rédeas em dia de competição. Qual seria o momento mais adequado à sua mudança? Até quando negaria sua essência feminina, intuitiva, recebida da própria Sacerdotisa, anos antes, antes mesmo de Tróia ser sua terra de conquista?

***
Pensou muito sobre pertencimento.
De onde brotava suas raízes?
A quem de fato pertencia, depois de suas crenças?

***

A avó lhe dissera outrora que ela havia recebido e negado o espírito de luz.
Ela, como sábia mulher do olhar bondoso e cristalino, ouvira suas aclamações, e tudo o que respondera fora uma charada, que passaria por irônica, não conhecesse há tanto a mulher.
Ela gostaria tanto de decifrar a tal frase.
Gostaria tanto de ter recebido o anel com sua herança emocional...

***

Chegara o momento de por em prática o que conhecia até então.



sábado, 5 de novembro de 2011

Ela passou a noite toda calada na companhia dele.
Seus diálogos eram num silêncio gritante, pois ela o amava e sentia a paixão sozinha houvera tantos anos, que se acostumara a não dizer palavra, mesmo com ele deitado ao seu lado.
Inspirou lenta e profundamente, saboreando o perfume que ele exalava. Após o banho, o cheiro era simples e real, era o cheiro mais íntimo dele, aquele que o perfume teimava em esconder.
O cheiro raro do homem amado, que ela tinha que buscar nos raros momentos - essa era uma noite realmente especial, pois conseguira a noite toda com ele.
Lembrar esses momentos fazia sua garganta travar e seus olhos marejarem, mas não conseguia evitar o sorriso bobo que brotava em seus lábios.
Queria gritar aos setes cantos esse amor.
Queria cantar a liberdade desse amor enclausurado.
Queria dizer a ele o quanto o amava e o tanto que o Amor era resistente em esperar.
Queria acelerar o cronômetro, para que a data tão tardia chegasse logo, e ele finalmente viesse para ficar, pois soubera desde o momento em que o conhecera, que este amor, assim como o vinho, seria melhor no futuro.
Pois só com ele aceitaria morar na casa perdida no meio da praia, só com ele aceitaria estar em qualquer lugar, conquanto estivessem juntos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pôs-se pela terceira vez a editar sua autobiografia, correndo os olhos mareados pelo texto.
Não acrescentou palavra.
Fazia muito tempo que ela não escrevia, há muito a emoção lhe tocava a alma.
Estava no trecho em que riscava um a um dos mandamentos, e, a não ser pelo quinto, sua lista estava repleta das mais variadas peripécias.
Ainda assim, não se comoveu.
Sentia como se sua alma fosse dividida em duas metades, e cada uma corria para um dos pontos cardeais.
A confusão do homem agora lhe conturbava, não era apenas como antes, quando sabia o que queria e como fazê-lo realidade.
A única posição que conhecia era o papel que desempenhava na cena toda.
Tomou as metáforas como frases prontas e reconheceu seu maior erro.
Estava inerte.
Com tanta paz, que não se reconheceu.

***

Segunda-feira começaria a mais nova etapa de sua vida, a mais recente conquista, e esboçou um leve sorriso.
Seria ela capaz de retomar a alegria? A vida pulsante? A construção de uma auto-biografia infinita, aventurosa? Sua montanha-russa de vida?
Quem era essa mulher?
Como conseguiria preencher as lacunas daquela história, não fosse repetindo, retomando e reagindo?
Onde estava Helena de Sistriera, além de dentro dela?

***

Suspirou, enxugou sua dor com rodo.

***

Era um bom dia, e começava agora.
O coração estava apertado, e com sua capacidade máxima preenchida.
Pelo menos ainda estava lá, pulsando. Na dor e no amor.
Pensou em seu melhor amigo, aquele que cuidava da sua boneca enquanto ela vivia, e sentiu sua falta.
Seu mundo era muito mais completo com os amigos ao seu redor.

***

O homem a magoara novamente.
Perdera tanto tempo buscando a resposta em todos os lugares...
Mas não estavam em lugar algum que não dentro dela.
Sentia seus deveres assim como sentira o assalto da segunda passada e foi nesse momento em que abriu o seu tarot.
O Caminho que lhe atribuia as respostas mais iminentes.

***

Era o momento certo para recuperar o fôlego e atravessar o canal a nado.
Se quisesse a voluptuosidade do amor, teria que vencer o amor à voluptuosidade.

domingo, 3 de abril de 2011

Feliz! Estava muito feliz após a sessão de sexta-feira.
Não havia sido um encontro qualquer, pois a mulher a ajudara de uma forma simples e profunda a limpar suas dores, varrer seus fantasmas.
Ela se sentia muito mais leve em não carregar em seus ombros vidas que não eram a dela - deve ter sobrado peso pra muita gente, mas ela já não se importava mais.
Devolveu a cada um o que lhes pertenciam, e tomou para si, o que por direito divino lhe pertencia.
Perdoou, abençoou e libertou nome por nome, inclusive o Nome Próprio, que era a quem mais devia perdão.
Nunca se amou tanto como a partir deste dia. Estava plena de si, e isso bastava.
Transformou em cinzas tudo que não lhe cabia mais: sentimentos, rancores, objetos e documentos e com isso transmutou todo seu futuro.
Era uma tela em branco agora, e não sentia mais o pânico de outrora.
Sentia liberdade por ser quem era.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Amor, só, não basta.

Casamento, por Arthur da Távola




......Aos casados há muito tempo, aos que não casaram, aos que vão casar, aos que acabaram de casar, aos que pensam em se separar, aos que acabaram de se separar, aos que pensam em voltar...

Por mais que o poder e o dinheiro tenham conquistado uma ótima posição no ranking das virtudes, o amor ainda lidera com folga.

......Tudo o que todos querem é amar. Encontrar alguém que faça bater forte o coração e justifique loucuras. Que nos faça entrar em transe, cair de quatro, babar na gravata. Que nos faça revirar os olhos, rir à toa, cantarolar dentro de um ônibus lotado. Tem algum médico aí???

......Depois que acaba esta paixão retumbante, sobra o que?

O amor. Mas não o amor mistificado, que muitos julgam ter o poder de fazer levitar. O que sobra é o amor que todos conhecemos, o sentimento que temos por mãe, pai, irmão, filho. É tudo o mesmo amor, só que entre homem/mulher (amantes) existe sexo. Não existem vários tipos de amor, assim como não existem três tipos de saudades, quatro de ódio, seis espécies de inveja.

......O amor é único, como qualquer sentimento, seja ele destinado a familiares, ao cônjuge ou a Deus.

......A diferença é que, como entre marido e mulher não há laços de sangue, a sedução tem que ser ininterrupta. Por não haver nenhuma garantia de durabilidade, qualquer alteração no tom de voz nos fragiliza, e de cobrança em cobrança acabamos por sepultar uma relação que poderia ser eterna.

......Casaram. Te amo pra lá, te amo pra cá. Lindo, mas insustentável.

......O sucesso de um casamento exige mais do que declarações românticas.

......Entre duas pessoas que resolvem dividir o mesmo teto, tem que haver muito mais do que amor, e às vezes nem necessita de um amor tão intenso.

......É preciso que haja, antes de mais nada, respeito. Agressões zero.

......Disposição para ouvir os argumentos alheios. Alguma paciência... Amor, só, não basta.

......Não pode haver competição. Nem comparações. Tem que ter jogo de cintura para acatar regras que não foram previamente combinadas.

......Tem que haver bom humor para enfrentarem imprevistos, acessos de carência, infantilidades. Tem que saber levar. Amar, só, é pouco.

......Tem que haver inteligência. Um cérebro programado para enfrentar demissões inesperadas, contas pra pagar, tensões pré-menstruais, rejeições.

......Tem que ter disciplina para educar filhos, dar exemplo, não gritar.

......Tem que ter um bom psiquiatra. Não adianta, apenas, amar. ......Entre casais que se unem visando à longevidade do matrimônio tem que haver um pouco de silêncio, amigos de infância, vida própria, um tempo pra cada um.

......Tem que haver confiança.

......Uma certa camaradagem, às vezes fingir que não viu, fazer de conta que não escutou. É preciso entender que união não significa, necessariamente, fusão.

......E que amar, 'solamente', não basta.

......Entre homens e mulheres que acham que o amor é só poesia, falta discernimento, pé no chão, racionalidade. Tem que saber que o amor pode ser bom, pode durar para sempre, mas que sozinho não dá conta do recado.

......O amor é grande mas não é dois. É preciso convocar uma turma de sentimentos para amparar esse amor que carrega o ônus da onipotência.

......O amor até pode nos bastar, mas ele próprio não se basta.

......Um bom amor aos que já têm!

......Um bom encontro aos que procuram!

......E felicidades a todos nós!

terça-feira, 22 de março de 2011

Sim, ela estremeceu quando os olhos se encontraram.
Havia muito tempo que havia calado seu olhar - o que de nada adiantou.
Sim, ela reconhecia o seu próprio olhar e apesar de não ser capaz de flagrar-se olhando para si mesma, conseguia sentir o quão profundo e penetrante eles a miravam naquele momento.
Pediu um café e virou, tomando como se fosse um shot de whisky cowboy. 
Era uma fatia do passado roubando-lhe o presente e era doce e angustiante ao mesmo tempo.
As mesmas dores, o mesmo afeto, as mesmas decepções. Já passara tanto tempo sem que contudo ela conseguisse apagar aquele olhar de seu carinho.
Sim, ela reconheceu a situação e parecia que estava mordendo o próprio rabo, infinito.
Pensou em sua sala, em seu divã. No cigarro que nunca apagara, pois a chama sempre se mantinha acesa dentro dela - tinha essa terrível capacidade de amar para sempre que insistia em acompanhá-la de tempos em tempo. Um dia fora generosa, mas aquilo tinha sido há muito tempo, decidira se esquecer desse capítulo.

Chorou toda a dor do mundo em silêncio. Desejara ela parir Tróia , enfrentar Capadócia. E seus dragões.
Pediu mais uma dose de café. A situação agora parecia mais perigosa, pois seu olhar de tristeza fora captado e ela era orgulhosa demais para reconhecer sua fraqueza.
Ela era a criança que amava em silêncio. Ela era a mulher que gritava aos quatro ventos o seu desejo.
Tomou o segundo trago e por um instante era Terezinha de Chico. Ele era o segundo.

O tempo passou. Ela olhou para trás e percebeu que nada poderia ser modificado. Tentou mudar a música em vão, pois os dançarinos não se moveram.

Quem era ela nunca saberia, pois as lágrimas haviam borrado a máscara. Kabuki. Só conhecia seu íntimo, e ela reconhecera seus oponentes. Já vivera a mesma vida em outra vida. Um eterno retorno.

P.S. Ela não conseguiu datar o texto, não tinha sequer certeza se ele não era apenas parte de sua fantasia.

terça-feira, 15 de março de 2011

Era uma historia que começava no desepero e foi através do tratamento que a relação se tornou amizade.
Por serem amigos, se curaram mutuamente, ainda que sem perceberem.
A amizade foi esquecida e emnora fossem amigos, eram estranhos a partir do fim.
Despediram-se num silencioso abraço, onde todas as dores gritaram e saltaram de seus corpos, libertando-os da solidão.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Buscou, insessantemente sua marca, seu estilo. Sua caligrafia subjetiva.
Redescobriu (ou lembrou-se?) de seu amor pela cor, pela história humana, pela arte.
Passou a ler Itten como antigamente lia Sheldon. E se apaixonou pela Bauhaus, Kandinsky, Miro.
E Van Gogh, e mais cores, e harmonias, de um, dois, três, quatro matizes.
Foi quando descobriu a luz, na interferência da luz e da sombra em sua face. E na sua alma.
A mesma luz que desbravou e trouxe à tona seus conflitos mais obscuros, mostrou todos o cobre de seus olhos.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Foi na sua busca pela perfeição que descobriu a paixão, que se sobrepunha à técnica.
Foi errante que defrontou o amor à cor.
Redescobriu-se em todas as matizes, saturações.
Foi exatamente na pausa onde achou o dinamismo. Por sua excelência.
Não queria precisar parar o mundo para chegar na sua maior essência - a verdade.
Sorriu um riso tristo, emocionado e aflito, mas havia um orgulho de desembaçar sua imagem no espelho.
De distorcer-se e encontrar-se nítida.
Com volúpia e intensidade.
Queria agradecer ao homem que lhe servia de espelho, mas nunca encontraria palavras exatas.
Ele estava lhe ajudando a ser ela, artista.
Sem julgamento, sem pressa e com cuidado.
Sabia que um passo em falso e ela lhe escaparia por entre os dedos.
E foi então que vislumbrou seu lado mal, seu lado terreno.
Sua face passional.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Tinha o mesmo medo, e dia após dia, não conseguia abandoná-lo - o medo.
Era o rato que corre do gato e encarava o cachorro.
Era a rosa sedenta que não conseguia buscar água.
Se deitou para conseguir ver de mais perto seu íntimo.
Era uma garotinha linda e amedrontada. Morria de medo do escuro e da rejeição.
Temia despedidas como gato escaldado teme água fria.
Adeus lhe doía mais que qualquer outra cena.
E exatamente hoje aprendera a raiz quadrada dessa dor.
Sua profundidade, largura, altura. Suas dimensões.
Saiu para comprar luvas e pá, pois sem dúvida iria replantá-la.
Lugar de resto é no lixo, ou de modo mais sustentável, reciclagem.
Era a hora de deixar um beijo em cada um, pegar a valise da angústia, abrir a porta e sair.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Se eu fosse eu...

Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teriamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais

Clarice Lispector

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Keep walking


Porque hoje desprentensiosamente leu um pouquinho do passado e percebeu que nada mudou.
Com o passar das horas, ficou mais distante. Absoluta.
Não sentiu nem pena nem remorso.
Era quase mergulhar nas águas geladas sem ondas e sentir a luz do sol açoitando a superfície, porém, em vão, tentar reter o calor.
Sim, ela lembrava deles como uma névoa do passado e tudo o que sentia mais falta era poder ser qualquer uma que sua personagem decidisse interpretar. Estava no país das máscaras e poderia sem mais nem menos, a qualquer momento vestir a mais aprazível.

Leu a carta como quem observa os peixes viverem no aquário.
Apesar da urgência, tinha todo o tempo do mundo, e o louco sabia disso, pois essa era sua segunda volta, alguma coisa aprendera. A mulher estava envolta por um círculo de parreiras coloridas, nua, com força de leão, astúcia de águia. O mundo nas mãos e a trilha pela frente.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Do jeito que ela é


Demoraram-se anos para que ela pudesse construir sua bagagem cultural, espalhar as peças sobre a mesa e escolher as quais mais gostava.
Custaram-lhe muitas horas no divã para desenvolver e formalizar sua identidade.
Contestou o nome dado e assumiu seu nome próprio.
Afirmou suas preferências, seus gestos, tom de voz. Era peculiar e autêntica.
Ela era do seu jeito, particular e unitária.
Suas memórias a acompanhavam tatuadas em sua história.
Ela era Helena, mulher de Atenas e teve seu sutiã queimado em Woodstock.
Fora heroína de seus contemporâneos. Fora a face da moeda local.
Era a encantadora de Sistriera e embora não a visitasse há mais de 80 anos, tinha certeza que fora lá que criara seus filhos. (eles tinham aquele sotaque característico)
A cidade era real ainda que seus habitantes fossem parte de seus ossos.
Essa história se localizava em seus olhos. Sua frieza distante trazida como herança, junto com seus longos cabelos lustrosos.
Tinha lábios tintos por diversas paixões. Cada uma vivida última e unicamente.
Pegou sua mala e a encheu de recortes de jornal. Eles lhe davam a segurança que suas memórias eram reais, assim como as poucas fotos que guardava sob a penteadeira.
Agora decidira ser outra, e nada daquilo fazia sentido.
Tinha pouco mais de 30 anos e era solteira (aquilo sim não fazia sentido para quem fora criada em Sistriera).
Sua pergunta era a mesma: - Se confiava tanto na opinião dela, por que não a escolhera oito anos antes, quando ainda se dispunha a viver no México?




quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Ouviu o telefone tocar e sentiu estranheza ao observar no visor o número de procedência.
Já chorara tanto por aquele número.
Já questionara muito se era necessário que ela fosse ainda melhor para aquele número aparecer novamente.
Julgara ser necessário mudar de peso, de cabelo, de religião.
Sua profissão era intactável.

Ela atendeu com uma voz fria e distante e percebeu que não funcionaria.
Perguntou dos filhos e da família - que desejara ser um dia sua agregada.
Se interessou pela bolsa de valores, pela medicina ortomolecular.

Percebeu que na vida, conforme o caminho do louco uma vez lhe ensinara, tudo obedecia ao circuito da roda da fortuna.
Movimentos ascendentes e descendentes, sem saber se são horários ou anti-horários.
Isso lhe trouxe uma calma sem limites.
Ela era um mar sem tormentas.
Ela era o céu sem trovões.

A música de roda, os homens abraçados.
A janela entreaberta pelas cortinas rendadas.
Jerusalém era onde econtrava o seu mais íntimo revelado, onde seu nome traduzia mais de um sentido.
Era a matriarca e a filha prometida. A amante e amada.

Anoiteceu e o encanto dele perdera a força. A magia.
Poderia sorrir novamente e desta vez não precisaria visitar Atenas.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A TV estava ligada e o filme começou.
Ela, linda, de luvas em pelica caramelo, vestindo um tubo evasê preto, saltos altíssimos da sola vermelha.
Ele, lindo, de cabelos engruvinhados longamente cortados, cavanhaque e resto da face por barbear.
As taças de proseco tilintam e o som que produz tiram um sorriso suave de ambos.
Havia muito a brindarem: aquele encontro, os anteriores e os próximos.
Recearam o fim daquele amor, e daquela magia que só existia quando se tocavam.

O sino da catedral badalou oito vezes.
Ela precisava levantar e trabalhar, ele,  dormir e sonhar...

Despediram-se apenas com um olhar sôfrego, pois se reencontrariam dali a dois anos.
Viveriam uma guerra necessária e particular.
Eram duas luas eclipsadas, cada qual pelo seu planeta.

Juraram voltar sem terem que partir novamente.

Em outra vida.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Já passavam das onze quando ela sentiu o perfume dele preencher a sala de TV.
Era tão suave que ela precisou se aproximar bastante para que ficasse mais intenso.
Era tão adocicado quanto perdurava em sua memória.
Rodopiou encantada... ritmada, pois ele fora seu príncipe encantado. Ninguém além dele usaria o cetro.

A visão se evaporou, todavia ela mantivesse o sorriso nos lábios e a leveza em seu coração.

Era 4 de julho e os fogos estouravam em sua alma. O calor e a cor.
Amarelo, vermelho e verde.
Sódio, Lítio, Bário.
Agora ela admirava a tabela periódica.

Foi dormir com inquietação, o passado sempre dava um jeito de encontrá-la em seus sonhos e ela gostaria de poder impedir isso.
Fechou os olhos, fez o sinal da cruz e adormeceu.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Ela estava confusa, nunca na vida trabalhara tão arduamente na sua individualidade.
Que personagem representava ela na cena toda? Qual era a máscara que ela vestia?
Custara-lhe muito tempo e pensamento para definir seu estilo, sua marca e no entanto as pessoas continuavam a querer-lhe uma igual, vulgar.
Decidira ser biruta, e não vento.
Arriscou-se a não responder àquilo que supunha ser um questionamento... era livre para falar aos setes mares, aos sete pontos cardeais... Realmente estava livre.
Pensou no seu passado e não se arrependeu nem por um segundo deixá-lo para trás.
Queria mais era vida nova, senão de que lhe adiantaria ter lustrado a máscara? Mudado os adereços?
Precisou de mais plumas. Turquesa, turca, esvoçante. Leve e feliz como ela se sentia.
Esse era o momento de se afirmar. De trocar de pele, camaleoa.
Pediu seu nome gravado em ouro. Deu seus pés a ser beijado.
Não, não era mais um chapéu que ajeitava.
Era uma coroa que legitimava sua origem pagã.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Novo Ano


Era o primeiro dia do ano e ela pensou na tela em branco diante de si.
Pensou em tudo que lhe foi primeiro, ainda que recomeço.
Lembrou do primeiro namorado, da primeira transa, do primeiro dia de trabalho, da primeira vez que carregou a bebê no colo, da primeira vez que sentiu vontade de rir e chorar ao mesmo tempo.
Sentiu o cheiro de cominho que lhe lembrava a primeira vez que esteve na Grécia.
A primeira noite de casada.
A primeira troca de fralda.

Ele atravessou seus sonhos, pois sim, ela colocou uma muralha tão impenetrável em seu passado que só se aproxiamavam quem ela permitia.

Eram tantas as cenas que seu filme ficou confuso. Era Jerusalém ou Sistriera? Já não se recordava mais.
Passou por tantas cidades, com pés cansados de desvendar seu próprio mundo.
Choveu forte e ela observou a rua com os olhos marejados e cansados. Era uma senhora de 60 anos num corpo jovem e acinturado. Choveu mais forte ainda em sua garganta.

Ajeitou o chapéu e retocou o batom vermelho.
Apertou as bochechas, num ato de dar-lhes vida.
Estava estática e pulsante.