quarta-feira, 6 de janeiro de 2010




Nunca gostou de livros meramente descritivos.

Dizia que eram chatos e que era pura perda de tempo se prender a detalhes que pouco importavam no final das contas, uma vez que história é história.

Levantou-se com uma leve irritação. Mal humor presente.

Lembrou de alguns anos passados, e trouxe os mesmos sorrisos para o presente.

Havia uma música de batidas constantes, com um triângulo batendo no fundo.

Dançou, mesmo sem saber dançar.

Lembrou dos olhos, do sabor de uma dose de whisky cujo gelo já havia derretido, do braço envolvendo a cintura. Do perfume amadeirado que exalava de sua pele,

Dos gestos canhotos que a faziam rodopiar.
Sentira as descobertas do que no futuro fariam suas bases tremerem.

Fora tudo muito leve e muito intenso. As trocas, os sorrisos, as garfadas. Tudo havia se congelado no tempo.

A imagem das pernas cruzadas de forma tão masculina.

O jeito de mexer em seus cabelos, de assoprar em seu ouvido esquerdo.

O jantar estava pronto, porém não foi servido. Estava aguardando as garrafas de vinho tinto se esvaziarem e num momento posterior, os corpos se encherem. De prazer finito.

Era uma despedida. Nunca um adeus.

Sabe-se lá quando essas cenas se tornariam reais. Eram quase oníricas.

Feliz. Demasiada e obcenamente feliz.

O dia amanheceu e com ele as memórias foram guardadas dentro da caixa musicada.

E dia após dia, o que não fora guardado, fora escrito em metáforas.

E o que não foi escrito, foi dito. Entre um chopp e outro, numa esquina que poderia ser uma qualquer, não fosse sua presença.

Seus olhos rodopiaram, e recebeu cada palavra com uma dignidade de poucos. Sim, foi capaz de reconhecer verdade em cada uma delas, e admitiu que já percebera o sentido de tudo aquilo em uma outra ocasião.

Ainda que naquele momento não estivessem prontos, acendeu um cigarro e olhou com uma certa malícia de quem se sente pouco à vontade.

Tomou o último gole, sozinho no fundo do copo, e pediu a nota. Ao chegar no carro, abriu a porta, fez um curto caminho (por que o caminho não poderia ser mais longo?), e despediu-se novamente.

Não era um adeus. Era uma despedida.

Aquela noite foi decisiva. A partir de então pudera ter certeza entre o moral e o profano.

E já havia tomado sua decisão, ainda que os outros a desconhecesse.

Nunca mais pôde evitar dialogar aos 4 ventos, falando consigo, fingindo ter alguém tão próximo.

Havia a barreira da realidade. Aliás, haviam duas realidades, e só foi esse fato que impediu a completa insensatez de sua conduta.

Não sem sanidade, apenas descobrira como não evitar o que era vida.

Logo depois, foi atendida e recebeu alta.

Conhecia mais de si que qualquer um. Nunca mais ignoraria aquelas duras lições de amor, de afeto, de bondade, ainda que se machucasse.

Ainda que para isso precisasse contar à pessoa de quem nunca mais tivera notícia que ela fora traída.
Não por vingança. Por puro desejo de limpar sua trajetória e poder começar do zero.

Sentia tanta falta da família e foi incapaz de fazer aquele telefonema.

Teria que pedir por mais lâminas para analisar sua essência, mas agora estava por conta própria.

E saiu radiante com sua mais nova conquista: a identidade.

Um comentário:

gizelda disse...

Bom dia,Vanessa!

Esse texto é simplesmente lindo!
Perfeito.Aí está a paixão que vc cobra de mim...ela está em vc.
Bjs.